História

Fragmentos em busca do Pampa Negro

Inúmeras peças encontradas geram entusiasmo na equipe do projeto

Carlos Queiroz -

Pedaços de cachimbo com decoração africana, cacos de louça, vidros de remédio, talheres, uma panela de cerâmica pronta para ser recuperada, um pente de casco de tartaruga... São muitos os fragmentos encontrados nas escavações que passam de 50 dias na Charqueada São João. É mais uma etapa do projeto O Pampa Negro: A Arqueologia da Escravidão na Região Meridional do Brasil, desenvolvido por profissionais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). É um trabalho minucioso, com potencial para durar anos. E enquanto fixam os olhos a cada descoberta, os pesquisadores projetam onde abrir novas trincheiras. O que não faltam são pontos a escavar na charqueada que funcionou por 130 anos.
Até agora, as atenções da equipe voltam-se a uma malha de dez metros de largura e cerca de um metro de profundidade que, de largada, revelou restos de uma construção do século 19. São as fundações de um prédio que, ao que tudo indica, era um galpão. Um espaço multifuncional, que servia tanto para sociabilidade dos escravos, quanto para depósito de ferramentas e armazenagem do charque - explica o coordenador do projeto, o professor Lúcio Menezes.
Informações do inventário, observação de imagens de satélite e dados coletados com o equipamento Estação Total - que verifica a topografia do terreno - ajudam a definir os locais a serem escavados na São João. O pátio interno da Charqueada, por exemplo, está no roteiro e tende a agregar ainda mais peças à coleção, visto que era área de circulação, onde ocorriam várias atividades cotidianas. E, o principal: os fragmentos estão longe de ser apenas mais um número, devidamente cadastrado. “Existe um comportamento por trás do objeto. E, um mesmo objeto pode ter sido utilizado de diferentes formas. Por isso, ao longo do tempo, podemos cruzar informações e fazer comparações entre contextos”, destaca o arqueólogo Aluísio Gomes Alves.

Minúcia no sítio e no laboratório
Se em campo, pequenas pás, pincéis, peneiras, escovas, estiletes, baldes e olhares preparados a enxergar são essenciais na busca por vestígios, no Laboratório de Estudos Interdisciplinares de Cultura Material, o trabalho segue. E também meticuloso. Os fragmentos, devidamente identificados por quadrícula, não raro, são cuidadosamente observados em microscópio para que, na lupa, todos os tipos de acabamento saltem e revelem o máximo de informações possíveis.
São análises que ajudam a verificar se a peça foi fabricada em Pelotas e sob quais influências. “São atributos que nos permitem inferir de quais grupos, indígenas ou africanos, por exemplo, são aquelas características”, enfatiza Alves. É uma atividade de precisão. No sítio e nos estudos que estão por vir a partir do material recolhido. Fitas métricas, cadernos, desenhos e fotografias. Todos os detalhes são registrados, para que junto a mapas e a programas de informática, a localização e até a profundidade dos objetos ganhe sentido, em uma volta ao passado que quer - também - a transformação do presente.

Rede internacional. O projeto O Pampa Negro está inserido em uma rede internacional de pesquisa sobre afrodescendentes. A troca de informações inclui profissionais de Argentina, Cuba, Estados Unidos e também da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo. Desde que começaram as escavações, pesquisadores do Uruguai, da Alemanha e da Venezuela também já pisaram em solo pelotense, com objetivo de colher dados sobre o sistema escravista.
“É uma rede de colaboração que nos permite comparações continentais”, comemora Lúcio Menezes, também coordenador do Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural. Uma oportunidade que anima os estrangeiros: “São muito poucos pesquisadores que se dedicam a estudar a Diáspora Africana. Por isso, é muito necessária essa articulação”, afirma a professora da Escola de Antropologia da Universidade Central da Venezuela, Yara Altez.

Criação de um museu ganha força
A fartura de peças reveladas, logo na primeira trincheira, faz crescer o entusiasmo. O empresário Marcelo Mazza Terra já cogita a criação de um museu, como também a possibilidade de um dos locais escavados permanecer aberto aos turistas. “Estamos muito contentes, muito empolgados com a qualidade do trabalho”. É um sentimento que se espalha entre moradores, funcionários e visitantes da Charqueada São João; um dos belos pontos turísticos de Pelotas, às margens do arroio Pelotas.
E as descobertas remexem também nas memórias afetivas. Impossível não lembrar dos antigos contos da bisavó Amélia Tavares Moreira, charqueadora, “já nos tempos do homem livre” - ressalta. Os ossos, principalmente de gado, encontrados na escavação remetem às lembranças de vó Melinha sobre a queima dos resíduos para fabricação do cal que serviria para pintar a casa. “As coisas vão se encaixando. É fantástico.” São informações que ativam o interesse das novas gerações e cruzam os séculos. De 1807, quando a São João - de propriedade do português Antônio José Gonçalves Chaves - entrou em operação, até 1937, quando a carne salgada - que por décadas serviu de ração a escravos - deixou de ser produzida.
É uma terra que guarda história. E dor. A Charqueada chegou a possuir até 200 escravos e na safra de maior produção, entre novembro e maio, em torno de 200 mil cabeças de gado foram abatidas. Era uma rotina de até 16 horas diárias de serviço e exploração da mão de obra negra para gerar a riqueza e o patrimônio de que, ainda hoje, a cidade se orgulha.

“Gostaríamos que as escavações realizadas aqui servissem de exemplo de que o trabalho arqueológico pode ocorrer em paralelo ao desenvolvimento econômico”, destaca o empresário, que se criou naquelas terras. As mesmas onde também viu a filha Júlia, hoje com 20 anos, correr e brincar. E ouvir a velha história das nuvens de moscas, comuns a cada safra. A cada época de matança. E de sangue.

Relembre
Em cinco anos, O Pampa Negro já estudou nove charqueadas. Sempre com o mesmo desafio: informar a comunidade sobre os processos sociais e políticos que nos conduziram até os dias atuais. E o desenvolvimento de políticas culturais, por meio da arqueologia, é fundamental para transformar as condições sociais em que vivemos e não apenas da população afrodescendente - defende o coordenador do projeto. “Eu diria que racismo equivale não só ao ódio pelo outro. Racismo é, basicamente, ignorância histórica sobre o outro e si mesmo”. É algo a quebrar a partir, também, do conhecimento.

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